Entrevista
com especialista em bioética, Pe. Helio Luciano
Por
Thácio Siqueira
BRASILIA,
sexta-feira, 22 de junho de 2012 (ZENIT.org) – Ontem publicamos a primeira parte
da entrevista que o Pe. Helio concedeu a ZENIT com o fim de ajudar os católicos
do Brasil a refletirem sobre o tema do Aborto, que está em pauta para aprovação
no nosso país.
O Pe.
Helio Luciano é mestre em bioética pela Universidade de Navarra, mestre em
Teologia Moral pela Pontificia Universidade Santa Cruz em Roma e membro da
comissão de bioética da CNBB.
Publicamos
hoje a segunda e última parte da entrevista.
***
ZENIT:
O embrião é uma pessoa humana? O que é que comprova isso? E por que ele teria
todos os direitos fundamentais de um ser humano, incluindo o direito à vida?
PE.
HELIO: A resposta que dou a esta pergunta, que frequentemente se repete, é
sempre a mesma: não importa se o embrião é pessoa humana ou não. À primeira
vista tal resposta pode parecer polêmica ou até agressiva – mas asseguro que
esta não é a minha intenção. A questão é que “ser pessoa” ou “não ser pessoa” é
um problema filosófico e jamais poderá ser provado em âmbito
científico-positivo. Mas a discussão em relação ao aborto não é uma questão de
filosofia, mas de biologia básica.
O que
temos, desde a fecundação, independente se é pessoa ou não, é um novo ser
humano. Como já dizíamos – temos um novo indivíduo da espécie homo sapiens
sapiens, com um DNA único e irrepetível em toda a história da humanidade. Sendo
um ser vivo da espécie humana, tem todo o direito de ser respeitado como
qualquer outro ser humano.
Nas
aproximadamente quarenta semanas em que este novo ser humano costuma permanecer
dentro do ventre materno, não existe nenhum salto quantitativo ou qualitativo
que possa dizer que tenha sofrido uma mudança substancial. Todas as capacidades
humanas adquiridas por aquele novo ser, têm como base aquele momento inicial –
ou seja, aquela única célula fecundada, que já era um ser humano.
A
maioria dos defensores do aborto, hoje, costuma admitir as evidências
científicas que comprovam que a partir da fecundação temos um novo ser humano.
O que objetam é que este ser humano ainda não seria uma “pessoa humana”. A
partir desse pressuposto, as divergências entre os abortistas são grandes.
Alguns dirão que este ser humano se tornará “pessoa humana” a partir da
formação da placenta, outros dirão que a partir da formação do coração, outros
defendem que a personalidade se forma com o sistema nervoso central e por fim,
existem os que defendem que se torna “pessoa humana” somente após o nascimento.
Estes últimos chegam a defender o que se chama partial-birth abortion, ou
seja, “aborto do parcialmente nascido”.
Em tal
procedimento, assim que se dá o coroamento (coroamento é a aparição da cabeça
do feto durante o trabalho de parto), faz-se a sucção do cérebro da criança –
certamente aqui se trata de um claro infanticídio.
Todas
as tentativas de colocar esse início da “personalidade” em algum momento
concreto do desenvolvimento embrionário ou fetal serão sempre arbitrárias. Se
colocarmos o início da “personalidade” em alguma função ou órgão, porque não
poderíamos dizer que está no começo do exercício da consciência? Alguns autores
já afirmam isso e, consequentemente, defendem que o infanticídio – matar
crianças que não tenham o exercício de atividade consciente – é moralmente e
eticamente válido, pois não seriam “pessoas humanas”.
Por
essas discussões é que afirmo que não importa a partir de quando aquele ser
humano se tornará pessoa. O importante é que se trata de um ser humano, e que
merece todo o respeito e proteção que devemos a qualquer outro ser humano,
independente das funções que possa exercer.
ZENIT:
Quais são as tragédias que o aborto traz para uma nação que o aprova na sua
legislação?
PE.
HELIO: A tragédia mais profunda é a instituição de uma “cultura de morte”, que
não respeita o sofrimento das mães – muitas são quase induzidas socialmente ou
economicamente a realizar o aborto – e nem o direito básico dos próprios
cidadãos mais indefesos, aqueles que ainda estão por nascer.
É
irônico que tais sociedades possuem legislações bastante rigorosas para a
defesa de embriões animais, enquanto os seres humanos estão totalmente
indefesos. Hoje é mais seguro nascer feto de baleia do que feto humano.
Derivada
desta “cultura de morte” nasce uma atitude de egoísmo generalizado – o
importante não é mais o “bem comum” da sociedade, mas o individualismo, o bem
de cada um. Deixamos de viver em sociedade como modo de nos aperfeiçoarmos como
seres humanos sociais que somos, para converter-nos, como dizia Hobbes, em
lobos para os outros lobos.
O
processo de degradação da sociedade – em todos os pontos de vista – também é
uma consequência da chamada “cultura de morte”. Se o Direito, base da
civilização ocidental, perde sua raiz profunda que o justifica – ou seja, a
natureza humana e a defesa do mais débil – a civilização toda se ressente. A crise
– social, econômica, moral – da sociedade atual não é mera coincidência. Será
mera coincidência que os países com menor taxa de nascimento e maior índice de
aborto – Grécia, Portugal, Espanha e Itália – são aqueles com maior crise
econômica?
Historicamente,
toda a civilização que desrespeitou os valores básicos do ser humano, entrou em
decadência e desapareceu. O exemplo mais claro foi a degradação do Império
Romano – quando deixou de velar pelos valores básicos, tornando-se meramente
“populista”, ampliou seu domínio físico, mas perdeu sua força moral. Não foi a
invasão dos chamados “povos bárbaros” o que acabou com Roma – este foi só o
golpe final que fez cair o que por dentro já estava moralmente destruído.
ZENIT:
O senhor já se encontrou com católicos que aprovam o aborto? Eles podem ser
considerados pessoas que estão fora da doutrina e da moral católicas?
PE.
HELIO: A Igreja é uma realidade divina, mas que também possui leis e
autoridades que devem ser respeitadas. Assim como eu não posso, simplesmente,
declarar-me membro da Academia Brasileira de Letras – porque é necessário uma
série de requisitos para pertencer a esta Academia – ninguém pode por si mesmo,
sem cumprir certos requisitos, ser declarado um membro da Igreja. Deste modo,
católicos de fato que defendam o aborto não existem e não podem existir. Se
alguém defende o aborto, jamais poderá ser considerado um membro da Igreja, ou
seja, não pode participar do Corpo de Cristo.
Por
outro lado é um fato que existem grupos de pessoas que se dizem católicas – mas
não o são de fato – e que ao mesmo tempo defendem o aborto. Quem sabe o grupo
mais expressivo seja aquele que se autodenomina “Católicas pelo direito de
decidir”. Certamente os membros deste grupo não são de fato católicos, pois
defendem algo absolutamente contrário à própria humanidade – o direito de matar
um inocente. É verdade, como já dissemos antes, que a liberdade é um bem, mas
não é um bem absoluto. Este bem – o da liberdade – está por debaixo do direito
mais elementar de todos, o direito à vida, o bem maior defendido pelo Direito.
Neste
sentido, por que não criamos grupos como “Católicos pelo direito de
assassinar”, ou “Católicos pelo direito de roubar”. Certamente é uma ironia,
mas, às vezes, esta se faz necessária para entender o quão absurdo são os
argumentos. Assassinar ou roubar também são atos de liberdade, mas nem por isso
alguém pode defender esta liberdade como um valor – pois lesaria valores mais
altos, o da vida e o direito à propriedade privada. Do mesmo modo quem defende
uma liberdade para matar uma criança dentro do ventre materno, lesa o direito à
vida desta criança e, deste modo, não tem o direito de reclamar tal liberdade.
ZENIT:
Por que o aborto traz uma das penas canônicas mais sérias do direito canônico,
segundo o cânon 1398?
PE.
HELIO: Dizíamos, em outro ponto da entrevista, que o Direito tem um fundamento
natural, ou seja, expressa o verdadeiro modo de ser da humanidade. O Direito da
Igreja, chamado “Direito Canônico”, também tem a mesma raiz natural, além,
também, de regular matérias que conhecemos por Revelação.
Desde
um ponto de vista natural, como víamos antes, trata-se de um crime hediondo:
não apenas se está matando a um ser humano inocente e indefeso, mas se está
matando o próprio filho na fase da vida que ele mais necessitava da proteção
dos pais. Desde um ponto de vista sobrenatural, baseado na Revelação divina, é
algo ainda mais grave – o assassinato de um filho de Deus que tinha sido
confiado a estes pais.
As
penas no Direito – seja civil ou canônico – sempre devem ter um caráter de
proteger um bem, ou seja, de evitar um crime, além do caráter medicinal.
Falando em relação ao Direito civil, alguns acusam os católicos de serem
desumanos quando pedem a punição da mulher que realiza o aborto. A punição
existe para prevenir o crime, ou seja, em defesa da vida do indefeso.
Despenalizando
o aborto perdemos esta proteção importante para a vida do mais débil. Além
disso, na maioria das vezes, a mulher que realiza o aborto é a menos culpada
deste ato – normalmente ela está em meio a um conjunto de pressões sociais,
sentimentais e econômicas. Os principais culpados – e consequentemente os que
deveriam ser mais duramente punidos – são aqueles que induzem e realizam o ato
ilegal e imoral do aborto.
Em
relação ao Direito Canônico, para que se entenda a gravidade da ofensa ao
próximo – sendo este “próximo” o próprio filho – e, consequentemente, a
gravidade da ofensa a Deus, é reservada a este pecado a pena da excomunhão
latae sententiae. Certamente a palavra excomunhão soa forte aos
ouvidos da opinião pública e de fato é a pena mais severa da Igreja – desligar
um membro da comunhão com a Igreja.
Com latae
sententiae se indica que a excomunhão é automática, ou seja,
quem comete ou induz alguém a cometer um aborto ou participa da execução do
mesmo, automaticamente está excluído da comunhão com a Igreja e,
consequentemente, com o Corpo de Cristo.
Ainda
sendo a pena mais grave da Igreja, a pena de excomunhão não condiz
com o aquilo que o imaginário popular interpreta por excomunhão. Trata-se,
como foi dito, de uma pena preventiva, educativa e medicinal. Em primeiro
lugar, sendo uma pena tão grave, só recai nela quem cometeu com certeza um
aborto – se alguém realiza uma tentativa de aborto sem “êxito”, comete um
pecado grave, mas não é excomungado.
Também
só é excomungado quem sabia, ainda que imperfeitamente, da existência de uma
pena especial. Além disso, as pessoas que cometeram, induziram ou participaram
de um aborto – e consequentemente estão excomungadas – podem pedir e receber o
perdão pelo pecado cometido e o levantamento da pena de excomunhão.
Cada
diocese possui alguns sacerdotes – em algumas dioceses todos os sacerdotes –
habilitados para levantar esta pena, dando logicamente alguma penitência
especial, para que se entenda a gravidade do pecado cometido. Normalmente a
maior penitência para uma mãe que cometeu aborto é o sofrimento que carrega –
por toda a vida – por sentir a culpa de ter matado seu próprio filho.